domingo, 8 de junho de 2014

Análise: Dead Embryonic Cells (Sepultura)




Dead Embryonic Cells
Sepultura – Album: Arise (1991)

Land of anger
I didn't ask to be born
Sadness, sorrow
Everything so alone

Laboratory sickness
Infects humanity
No hope for cure
Die by technology

A world full of shit coming down
Tribal violence everywhere
Life in the age of terrorism
We spit in your other face

War of races
World without intelligence
A place consumed by time
End of it all

We're born!
With pain!
No more!
We're Dead Embryonic cells

Corrosion inside - we feel
Condemned future - we see
Empitness calls - we hear
Final premonition - the truth

Land of anger
I didn't ask to be born
Sadness, sorrow
Everything so alone

Laboratory sickness
Infects humanity
No hope for cure
Die technology

We're born with pain
Suffer remains
we're born
With pain sufffer
We're dead
Células Embrionárias Mortas


Terra do ódio
Eu não pedi pra nascer
Tristeza, sofrimento
Tudo é tão solitário

Doenças de laboratório
Infectam a humanidade
Sem esperança para a cura
Morrer pela tecnologia

Um mundo cheio de merda desabando
Violência tribal em todo lugar
A vida na era do terrorismo
Nós cuspimos em sua outra face.

Guerra das raças
Mundo sem inteligência
Um lugar consumido pelo tempo
Fim de Tudo

Nós nascemos!
Com dor!
Nunca mais!
Somos celulas embrionárias mortas

Corrosão interna - nós sentimos
Futuro condenado - nós vemos
Vazio chama - nós ouvimos
Premonição final - a verdade

Terra do ódio
Eu não pedi pra nascer
Tristeza, sofrimento
Tudo tão sozinho

Doenças de laboratório
Infectam a humanidade
Sem esperança para a cura
Morto pela tecnologia

Nós nascemos com dor
Lembranças sofridas
Nós nascemos
com dor e sofrimento
Estamos mortos.

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Análise:

Se pudermos utilizar apenas uma palavra para descrever a canção “Dead Embryonic Cells” dos brasileiros do Sepultura, com certeza seria: Perturbadora.

O início com barulhos “estranhos” antes da entrada dos instrumentos, já deixa o ouvinte tenso e apreensivo. O Sepultura faz uso do mesmo recurso da faixa antecessora do álbum (a já analisada e igualmente icônica, “Arise”). O ouvinte recebe uma massa sonora quando a introdução termina.

Max Cavalera vocifera as primeiras duas palavras que dão o clima da música: “Land of anger”. Podemos ver um ser humano sem qualquer esperança diante de um mundo, que se intensifica na sequencia, onde esse mesmo ser humano diz “I didin’t ask to be Born”, e se amplifica pelo uso das palavras “tristeza, sofrimento e solidão” nas duas frases seguintes. Estes sentimentos se tornaram muito comuns no fim dos anos 80 e início dos anos 90 do século XX. O mundo pós Guerra Fria é um mundo instável, e com mudanças violentas. Mudanças, essas, com destino obscuro. (HOBSBAWN, 1995, p.446)

O eu poético continua analisando o mundo, e por toda a segunda estrofe fala sobre as doenças (supostamente) criadas por grandes laboratórios para infectar a humanidade. Esta ação, como alguns grupos sustentam, seria uma forma dos grandes conglomerados farmacêuticos manterem os seus lucros astronômicos, a custa da histeria da população. (obs: vale frisar que não há sustentação dessas teses em estudos, sendo essa uma teoria mais ligada ao que chamamos de “mitos urbanos”)

A representação do mundo caótico daqueles anos continua na terceira estrofe, relatando eventos que eram rotineiramente manchetes dos jornais. A frase “Tribal violence everywhere” fala não só de conflitos armados na África e Ásia, mas também, das próprias sociedades urbanas e suas tribos, como Skin Heads, Punks ou Radicais da Esquerda. (HOBSBAWN, 1995, p.393-400). A frase “Life in the age of terrorism” fala sobre os noticiários mundo afora, repletos de informações sobre atentados e destruição causados por grupos radicais. A privatização da violência, com a venda de armas desenfreadas por corporações e governos para mãos de não militares, tornou o mundo extremamente perigoso. E governos e organismos internacionais não estavam prontos para bater de frente com este problema. Citemos as crises no Oriente Médio, nos Balcãs, Argélia e mesmo dentro dos EUA, com a ascensão dos movimentos de intolerância étnica e racial. (HOBSBAWN, 1995, p.540). Há uma citação à intolerância desse mundo, quando se faz a analogia à frase atribuída a Jesus: “We spit in your other face”. Ou seja, ao invés de dar a outra face para quem agride, a letra diz que estamos cuspindo em sinal de retaliação. 

A quarta estrofe fala cita “Guerra de Raças”, citando novamente de conflitos por razões étnicas (como a desintegração da Iugoslávia), ou político/religiosas (como na Palestina ou Irlanda), ou por poder econômico (como no caso da Guerra do Golfo). E temos uma observação pessoal do Eu Poético, quando diz “World without intelligence”, entendendo que o ser humano se torna irracional quando toma partido de idealismos. A desesperança volta a aparecer forte no final da estrofe, quando diz que é o “fim de tudo”.

O refrão deixa clara a mensagem da letra “We're born / With pain / No more / We're dead embryonic cells” de uma geração que já nasceu condenada pelos erros das gerações passadas. Nascem sem esperança alguma, dentro de um mundo condenado ao caos. Conforme a figura de linguagem apresentada, a humanidade já nasce morta, condenada ao fim prematuro.

Essa tristeza e desespero ficam mais claros ainda na estrofe logo após o refrão, com um andamento mais rápido, as palavras descrevem os sentimentos de uma grande parte da população mundial: “Corrosion inside - we feel / Condemned future - we see / Empitness calls - we hear”. Assolados pela fome, pela miséria, pela guerra, pela violência, como acreditar num mundo melhor? Assim, não há o que esperar da humanidade.

O solo de Andreas Kisser encaminha para uma mudança abrupta no andamento da canção, quando a melodia assume um ritmo mais cadenciado, sendo um dos riffs de guitarra mais marcantes da carreira do Sepultura.

A canção retorma o andamento inicial para repetição da primeira e segunda estrofes, e o refrão alterado para finalizar, concluindo que com dor e sofrimento a humanidade nasce (metaforicamente e naturalmente) e no final estaremos todos mortos. A voz gutural de Max Cavalera dá à letra o terror e desespero que ela deseja passar.


“Dead Embryonic Cells” é um dos maiores clássicos da história do Sepultura, e a mensagem contida nela é o retrato da falta de esperança, num mundo pós Guerra Fria, onde todas as certezas (sejam elas boas ou ruins) estavam destruídas, lançando a humanidade num novo milênio obscuro, caótico e violento.

  
Referencias:

CHRISTIE, Ian. Heavy Metal: a história completa. São Paulo: Editora Arx, 2010.

HOBSBAWN, Eric. Era dos Extremos: O Breve Século XX (1914-1991). São Paulo; Companhia das Letras, 1995.
JANOTTI JÚNIOR, Jeder. Heavy Metal com Dendê: rock pesado e mídia em tempos de globalização. Rio de Janeiro: E-papers, 2004

NAPOLITANO, Marcos. A História depois do papel. In PINSKY, Carla Bassanezi (org.) Fontes Históricas. 2ª Edição, São Paulo: Contexto, 2010.
______. História e Música: História cultural da música popular. 3ª Ed. Belo
Horizonte: Editora Autêntica, 2005.

domingo, 27 de abril de 2014

Análise: Material World Paranoia (Kreator)




Material World Paranoia
Kreator – Album: Coma of Souls (1990)

Dehumanization through industrialization
Bring fear to the masses of reincarnation
Manic frustration deterioration
Nature fights back for its own preservation

Concrete coffin breeds lunacy
Cold steel skeleton
Desperation in the factory
Crank out oblivion

Material world paranoia
Corporations rule the earth
Material world paranoia
Enslavery begins at birth

Power's illusion brings global confusion
A forgone conclusion of mind's evolution
Nature's destruction through massive production
A blatant example of mindless construction

Concrete coffin breeds lunacy
Cold steel skeleton
Desperation in the factory
Crank out oblivion

Material world paranoia

Don't dream about how life can be
Experience your dreams
Before this prefab culture wastes your life
Stay on the straight and narrow course
Material wealth is yours
But the promise of a better future is a lie

The promise of a better future is nothing but a lie!

Paranóia do Mundo Material (tradução)

Desumanização através da industrialização
Traz o medo às massas da reencarnação
Maníaca deterioração da frustração
A natureza luta por sua própria preservação

O caixão de concreto  produz o lunático
Esqueleto de aço frio
Desespero na fábrica
Roda para fora o esquecimento

Paranóia do mundo material
As corporações governam a terra
 Paranóia do mundo material
A escravização começa no nascimento

A ilusão do poder traz a confusão global
Uma conclusão renunciada da evolução da mente
Destruição da natureza através da produção em massa
Um exemplo claro de construção sem sentido.

O caixão de concreto produz o lunático
Esqueleto de aço frio
Desespero na fábrica
Roda para fora o esquecimento

Paranóia do mundo material

Não sonho sobre como a vida pode ser
Experiência de seus sonhos
Antes dessa cultura prefabricada desperdiçar sua vida
Esteja no curso reto e estreito.
A riqueza material é sua
Mas a promessa de um futuro melhor é uma mentira

A promessa de um futuro melhor não é nada mais que, uma mentira!

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Análise:

Se para os alemães do Scorpions o mundo na virada de 1990 para 1991 estava caminhando para a tão almejada paz e progresso da humanidade, em sua otimista canção “Wind of Change”, para os seus conterrâneos do Kreator tinha uma visão menos entusiasmada se analisarmos a canção “Material World Paranoia” do álbum Coma of Souls (1990).

Para toda uma geração de jovens, o mundo caminhava para o caos absoluto, convivendo com a violência, o desemprego, e toda sorte de desajuste social. O aumento da desigualdade aumentou por toda a parte, seja entre os países, seja entre regiões do mesmo país, seja em populações do mesmo país. (HOBSBAWN, 1995 p. 396-395)

Em poucas músicas o Kreator deixa tão explícito o qual é o seu posicionamento ideológico quanto às questões sociais, econômicas e políticas. É uma canção cujo o mote é a anarquia, evocando conceitos da consolidação do capitalismo, como a mecanização industrial, e a corrida da URSS pela mecanização como forma de mostrar o esplendor do seu modelo econômico.

A primeira estrofe apresenta o tema, o sentimento e o tom que da letra que vai desenvolver-se: “Dehumanization through industrialization”. O ser humano perde espaço para a produção, onde o resultado é mais importante que as relações, que os anseios e o bem estar das pessoas. Essa situação leva à frustração e a deterioração do trabalhador, pois se torna mais uma peça na engrenagem do sistema, sendo dispensável como indivíduo, visto a mecanização, e aqui não entendida somente como trazer as maquinas para o centro da produção, mas também tornar o processo inteiro feito pelos trabalhadores de forma repetitiva.

O bridge faz referências a conceitos do início da era industrial, como eventos que deram origem ao Ludismo, quando diz “Concrete coffin breeds lunacy”, onde o “caixão de concreto” é entendido como uma figura de linguagem para a fábrica (onde as pessoas sepultam suas esperanças, vida social e futuro). Segue com outra figura de linguagem “Cold steel skeleton” tratando das máquinas que substituem os trabalhadores, tendo como consequência o desemprego maciço, arrocho dos salários e uma série de problemas sociais decorrentes (HOBSBAWN, 1995 p. 402).

O refrão “Material world paranoia / Corporations rule the earth / Material world paranoia / Enslavery begins at birth” desenrola mais um conceito contido na canção. Até o momento falava-se da produção, mas agora trata da própria natureza da produção em massa: o consumo. Quando diz que a “escravidão começa ao nascer” está dizendo sobre a necessidade de consumo que o mundo contemporâneo impõe, e logo, a necessidade das industrias continuarem produzindo materiais e reproduzindo o seu lucro.

A próxima estrofe que segue, “Power's illusion brings global confusion / A forgone conclusion of mind's evolution”, e reforça a ideia sustentada no refrão, quando diz sobre o poder financeiro, que se confunde com sensação de poder total (o dinheiro pode fazer tudo). Com o fim do modelo socialista, principalmente com a reunificação alemã, o mundo viu a “vitória” dos modelos de economia de livre mercado, mas os riscos disso foram subestimados, e a economia ocidental não foi capaz de absorver milhões de consumidores de uma hora para outra. Principalmente do tocante à finda Alemanha Oriental. (MONIZ BANDEIRA, 2009, P.188-190)

A crítica feroz ao sistema de produção industrial desenfreado e irresponsável continua: “Nature's destruction through massive production / A blatant example of mindless construction”. O custo de produzir sem pensar nas consequências sociais e ambientais, na visão do Kreator, é um exemplo claro de um progresso apenas visto como ganho financeiro, pois ninguém estaria medindo os custos para a sociedade desse tipo de produção.

Quando volta ao refrão, temos a  mesma imagem do homem massacrado pela produção fabril, mas agora num novo contexto. Ele está inserido na produção industrial, e também quer ser um consumidor. Trabalha horas a fio durante o mês, recebe seu salário e vai até a loja comprar o tênis do famoso jogador de basquete que (talvez ele mesmo ou outro trabalhador como ele em qualquer parte do mundo) produziu repetitivamente. O ser humano perde a capacidade da reflexão sobre o trabalho em si mesmo, e passa também a ser mais uma peça no engenho do consumo. As mídias passam a imagem que consumir é ser feliz, e que ter é muito melhor que ser.

A crítica ao consumo midiático da massa segue na estrofe “Don't dream about how life can be / Experience your dreams / Before this prefab culture wastes your life / Stay on the straight and narrow course”. É um ciclo, onde a produção enseja em consumo, que pede uma propaganda para elevar o consume, e por consequência, continuar a produção fabril. Quando cita a “cultura pré fabricada” está falando exatamente de como a mídia de massa cria necessidades que “não sabíamos que precisávamos” (MERTON e LAZARSFELD 2000, p.109-131)

A sociedade do consumo é duramente criticada nas linhas “Material wealth is yours But the promise of a better future is a lie”, que sintetiza toda a força da letra. Conclui que a natureza efêmera da riqueza material não é capaz de trazer a felicidade ao ser humano. Naquele momento, os governos, as corporações transnacionais, e em particular os grandes donos dos meios de produção, falharam em tornar o mundo um lugar melhor. É como se o eu poético estivesse com o dedo em riste apontando para um grande empresário e dizendo que não importa o que faça, não há progresso sem justiça social.

Essa ideia está intimamente ligada à reunificação alemã, onde a população da Alemanha Oriental não queria esperar nada para ter acesso às mesmas coisas que seus compatriotas do lado ocidental já tinham. Após décadas de privação dos itens mais básicos, eles agora queriam televisores, carros, salgadinhos, refrigerantes. Queriam ser incorporados ao sistema do consumo, e ser reconhecidos por isso (MONIZ BANDEIRA, 2009, P.183-185)

O fim dos anos 80 e início dos anos 90 do século XX foram especialmente difíceis para o desenvolvimento econômico e social por todo o mundo, e o texto de Eric Hobsbawn é praticamente uma tradução da canção “Material World Paranoia”:

A tragédia histórica das Décadas de Crise foi a de que a produção agora dispensava visivelmente seres humano mais rapidamente do que a economia de mercado gerava novos empregos para eles. Além disso, esse processo foi acelerado pela competição global, pelo aperto financeiro dos governos, que – direta ou indiretamente – eram os maiores empregadores individuais, e não menos após 1980, pela então predominantes teologia de livre mercado que pressionava em favor da transferência de emprego para formas empresariais de maximização de lucros, sobretudo para empresas privadas que, por definição, não pensam em outro interesse além do seu próprio, pecuniário. (HOBSBAWN, 1995, p. 404)

E ideia que o progresso traria a felicidade para o homem, muito em voga nos positivistas do início do século XX (como o sociólogo Emile Durkheim) é jogada por terra segundo as palavras do Kreator, quando repete no fim da canção a frase “a promessa de um futuro melhor não é nada mais que uma mentira”, como um grito raivoso para que as pessoas abram a mente para entender o que realmente é importante na vida.

Com uma linha rítmica marcada mais pela cadência, a canção traz um vocal forte, mas menos gutural do que o costumeiro, mostrando uma cara diferente do Kreator. Os riffs marcantes estão lá, a bateria frenética, e a velocidade típica em vários momentos. Há menos tensão do que o normal esperado, mas a melodia casa-se com a intenção da letra. A ultima estrofe tem um andamento muito rápido, com as palavras sendo declamadas na mesma velocidade, acompanhando o ritmo da base sonora, e depois é sucedida pelo solo de guitarra, e que retorna depois à frase principal fechando a canção de maneira incrível, com Mille Petrozza gritando “The promise of a better future is nothing but a lie”.

Essa é com certeza uma maneira de dizer que as coisas não iam bem no mundo, e que mesmo após o fim das tensões da guerra fria, nem por isso as coisas estavam melhores, pois outros agentes estavam pressionando as pessoas rumo ao caos. E no fim das contas, nem o capitalismo nem o socialismo foram capazes de trazer a felicidade à humanidade, pois as pessoas são, por natureza, propensas ao individualismo.

As corporações, os governos, os opositores, os teóricos. Depois da queda do Muro de Berlim todos prometeram um futuro melhor, e muito acreditaram nos “ventos da mudança” quando na verdade, vivíamos (e ainda vivemos) a “paranóia do mundo material”, trabalhando muito, vivendo pouco e pensando nada.

Referencias:

CHRISTIE, Ian. Heavy Metal: a história completa. São Paulo: Editora Arx, 2010.

HOBSBAWN, Eric. Era dos Extremos: O Breve Século XX (1914-1991). São Paulo; Companhia das Letras, 1995.

MERTON, Robert K. e LAZARSFELD, Paul F.: Comunicação de Massa, Gosto Popular e a Organização da Ação Social. In: ______LIMA, L.C. (coord.) Teoria da cultura de massa. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. A Reunificação da Alemanha: do ideal socialista ao socialismo real. 3ª edição, São Paulo: Editora Unesp; 2009.

NAPOLITANO, Marcos. A História depois do papel. In PINSKY, Carla Bassanezi (org.) Fontes Históricas. 2ª Edição, São Paulo: Contexto, 2010.
______. História e Música: História cultural da música popular. 3ª Ed. Belo
Horizonte: Editora Autêntica, 2005.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Adendo: Ventos da Mudança

Nota:
Antes de continuar na análise proposta sobre as canções do Megadeth, Kreator e Sepultura, farei um adendo que utilizei no TCC com uma análise pontual sobre a música “Wind of Change” do Scorpions, justamente porque ela serve como contraponto às analises mais realistas/pessimistas das bandas de Thrash Metal, e que permite vermos com mais clareza a diferença dos estilos dentro do Heavy Metal, quanto à temática, musicalidade e posicionamento político dos seus letristas.


O mundo passava por profundas mudanças com a queda do Muro de Berlim em 1989, e na esteira daquele processo muitos eram os países que botavam abaixo seus governos totalitários alinhados à URSS. Não somente na Alemanha Oriental (RDA), mas também na Hungria, Polônia e Romênia, apenas para citarmos os principais. (MEYER, 2009).

Porém, não há como negar que os eventos da noite de 09 de novembro de 1989 em Berlim foram catalisadores e inspiradores para a queda dos regimes socialistas e da própria URSS em 1991.

O processo da reunificação alemã, entretanto, ainda demorou quase um ano, finalizado apenas em 03 de outubro 1990, quando houve a anexação dos cinco estados que compunham a antiga Alemanha Oriental (RDA) à Alemanha Ocidental (RFA) tornando-se novamente um único país. (MONIZ BANDEIRA, 2009, p.2004)

Nesse contexto, a banda alemã Scorpions lança no fim de 1990 o seu décimo primeiro álbum de estúdio, chamado “Crazy World” com a música “Wind of Change”, que se tornaria o maior sucesso da carreira do grupo. E a explicação para o sucesso está na mensagem extremamente positiva que a canção reflete:


Wind Of Change

I follow the Moskva
Down to Gorky Park
Listening to the wind of change
An August summer night
Soldiers passing by
Listening to the wind of change

The world is closing in
Did you ever think?
That we could be so close, like brothers
The future's in the air
I can feel it everywhere
Blowing with the wind of change

Take me to the magic of the moment
On a glory night
Where the children of tomorrow dream away
In the wind of change

Walking down the street
Distant memories
Are buried in the past forever

I follow the Moskva
Down to Gorky Park
Listening to the wind of change

Take me to the magic of the moment
On a glory night
Where the children of tomorrow share their dreams
With you and me

Take me to the magic of the moment
On a glory night
Where the children of tomorrow dream away
In the wind of change

The wind of change blows straight
Into the face of time
Like a storm wind that will ring
The freedom bell for peace of mind
Let your balalaika sing
What my guitar wants to say

Take me to the magic of the moment
On a glory night
Where the children of tomorrow share their dreams
With you and me

Take me to the magic of the moment
On a glory night
Where the children of tomorrow dream away
In the wind of change

Vento da Mudança

Eu sigo o Moskva
Até o Parque Gorky
Escuto o vento da mudança
Uma noite de verão em agosto
Soldados caminhando
Escutando o vento da mudança

O mundo se fechando
Você já imaginou
Que poderíamos ser tão próximos, como irmãos?
O futuro está no ar
Posso senti-lo em todo lugar
Soprando com o vento da mudança

Leve-me à magia do momento
Numa noite de glória
Onde as crianças de amanhã sonharão
Com o vento da mudança

Caminhando pela rua
Recordações distantes
Enterradas no passado, para sempre

Eu sigo o Moskva
Até o Parque Gorky
Escuto o vento da mudança

Leve-me à magia do momento
Numa noite de glória
Onde as crianças de amanhã dividirão seus sonhos
Com você e eu

Leve-me à magia do momento
Numa noite de glória
Onde as crianças compartilham os seus sonhos
Com a mudança

O vento de mudanças sopra diretamente
na face do tempo
Como uma tempestade que tocará
A sino da liberdade para a paz da mente
Deixe sua Balalaika cantar
O que meu violão quer dizer

Leve-me à magia do momento
Numa noite de glória
Onde as crianças compartilham os seus sonhos
Com a mudança

Leve-me à magia do momento
Numa noite de glória
Onde as crianças de amanhã sonharão
Com o vento da mudança


Com as mudanças dramáticas ocorridas no mundo naquele período, a canção mostra o espírito que tomou conta de boa parte do mundo ocidental, com uma percepção de que a paz retornaria. Embora essa sensação ignore alguns eventos brutalmente violentos, como a deposição de Nicolae Ceaucescu na Romênia (executado em dezembro de 1989), ou o massacre da Praça da Paz Celestial em junho de 1989 em Pequim (capital chinesa).

Contudo essa sensação é reforçada e amplificada quando vemos as imagens da queda do Muro de Berlim e a festa dos alemães quebrando a picaretadas e marretadas o símbolo maior da Guerra Fria. E ainda quando analisamos a “Revolução de Veludo” que acabou com o regime totalitário na antiga Tchecoslováquia, e separou a República Tcheca e a Eslováquia, negociado diplomaticamente sem a necessidade determinante de uma revolta armada. (MEYER, 2009, p. 182-187)

A canção cita literalmente Moscou (Rio Moskva e Parque Gorky) e diz que as mudanças irradiam da capital do socialismo, e evidentemente está referindo à Perestroika e à Glasnost, uma nova forma de política e relação exterior implementada por Mikail Gorbatchov ao chegar poder na URSS em 1986(MEYER, 2009, p. 24-25) Este é considerado o marco definidor de tudo o que aconteceu depois, e também, o epílogo da própria URSS e do socialismo em seus países satélites (HOBSBAWN, 1995, p.475).

Se repararmos nas figuras de linguagem empregadas juntamente com a melodia suave (iniciada por um indelével assobio), o ouvinte é levado para paisagens bucólicas, pessoas se abraçando em harmonia, progresso da humanidade, amor fraternal/universal. Na concepção da letra não há conflito ou tensão, apenas a esperança que o mundo entre num período de paz, sem o medo da hecatombe nuclear, da opressão dos ditadores ou guerras separatistas.

A canção foi a mais executada em 10 países do mundo durante o ano de 1991, ganhando versões em língua espanhola e russa, transformando-a numa espécie de “hino” do fim da Guerra Fria. E justamente por não trazer aos ouvintes uma reflexão mais ampla sobre aquilo que pretendia falar, e pela suavidade da sua melodia agradável, a música podia ser exaustivamente repetida por várias rádios do mundo inteiro, facilmente assimilada pelas massas (ADORNO e HORKHEIMER, 2000, p.169-214).

A banda Scorpions se notabilizou durante a sua carreira por fazer um Hard Rock mais alinhado com aquilo que fazia sucesso nos grandes mercados fonográficos, e em algum ponto da sua trajetória nos anos 80 poderíamos até classificá-los como parte do Glam Metal. Isso, de sobremaneira, diminui a importância da banda ou sua qualidade técnica, e muito menos significa que a canção “Wind of Change” é uma propaganda deliberada da “extrema direita conservadora”. O que estamos analisando aqui é o sentimento que a banda compartilha com uma parcela imensa da população mundial, no tocante aos processos que deram fim ao bloco socialista. Trata-se de um documento onde podemos apreender o imaginário da maioria da população, mesmo que esta sensação apresentada esteja envolta por uma grande estratégia da indústria cultural que se apodera da música.

Com o esfacelamento rápido de todo o Mundo Socialista, com suas revoluções populares e mudança de poder, encerravam os anos da Guerra Fria como um suposto triunfo do capitalismo, particularmente dos EUA. E esse tom triunfal pode ser visto também na canção do Scorpions.

Mas essa visão não foi compartilhada por bandas que também escreveram sobre esse período, tal como o Kreator e o Sepultura, cujas visões são agudamente mais pessimistas acerca desse novo mundo que surge e do legado que os anos da oposição dos modelos econômicos deixa para a humanidade.

E analisando o atual momento, com a crise na Ucrânia e a anexação da Criméia pela Rússia, vemos que o “vento das mudanças” são mais como uma brisa passageira frente aos interesses políticos, econômicos e pessoais se sobrepõe ao bem estar do homem comum. Infelizmente, o mundo não é tão bonito e suave como propôs a canção de Klaus Maine.

Referências:

ADORNO, Theodor. HORKHEIMER, Max. A Indústria Cultural: o iluminismo como mistificação da massa. In: ______LIMA, L.C. (coord.) Teoria da cultura de massa. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

ARIÓSTEGUI, Júlio. A pesquisa histórica: teoria e método. Bauru(SP): Edusc, 2006.

CHRISTIE, Ian. Heavy Metal: a história completa. São Paulo: Editora Arx, 2010.

GUARINELLO, Norberto L. História científica, história contemporânea e história cotidiana. Revista Brasileira de História, São Paulo, v24, n.48, 13-38, 2004.

HOBSBAWN, Eric. Era dos Extremos: O Breve Século XX (1914-1991). São Paulo; Companhia das Letras, 1995.

MEYER, Michael. 1989: o ano que mudou o mundo: a verdadeira história da queda do Muro de Berlim. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2009.

MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. A Reunificação da Alemanha: do ideal socialista ao socialismo real. 3ª edição, São Paulo: Editora Unesp; 2009.

NAPOLITANO, Marcos. A História depois do papel. In PINSKY, Carla Bassanezi (org.) Fontes Históricas. 2ª Edição, São Paulo: Contexto, 2010.


SCORPIONS. Crazy World. S/l. Mercury Records. 1990. 1 CD